segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Cazuza

Uma psicóloga que assistiu ao filme do Cazuza escreveu um texto e o pôs pra circular sob o título "Cazuza, um idiota morto". Eu li o texto e achei um desrespeito, então fiquei com os dedos coçando pra retorquir. Intercalei meus comentários aos da autora e vou postá-los aqui, pra fomentar um pouco de reflexão nas cabecinhas desocupadas que porventura venham parar aqui.

'Fui ver o filme Cazuza há alguns dias e me deparei com uma coisa estarrecedora.. As pessoas estão cultivando ídolos errados... Como podemos cultivar um ídolo como Cazuza? Concordo que suas letras são muito tocantes, mas reverenciar um marginal como ele, é, no mínimo, inadmissível. Marginal, sim, pois Cazuza foi uma pessoa que viveu à margem da sociedade, pelo menos uma sociedade que tentamos construir (ao menos eu) com conceitos de certo e errado.

Pois bem, acho que a discussão aqui não se trata de Cazuza. Ele foi pego pra bode expiatório numa discussão sobre “o certo” e “o errado” segundo as opiniões pessoais da autora. Sim, opiniões pessoais, visto que “Certo” e “Errado”, assim taxativos, não são conceitos absolutos, mas opiniões pessoais baseadas na vivência, educação, meio social e até tradição religiosa de cada um. (Por isso o uso dos artigos definidos em “o certo” e “o errado”, visto que dizem respeito ao entendimento personalíssimo da autora, não a conceitos rígidos). Além disso, uma pessoa sozinha não constrói uma sociedade. Os conceitos genéricos (logo relativos) de uma sociedade resultam da conjugação dos sentimentos de cada um de seus membros a respeito deles... e, pelo visto, nem todos concordamos com a autora. Se discordar dos valores moralistas e preconceituosos da autora significa viver à margem da sociedade que ela tenta construir, então eu tenho orgulho de ser um deles.

“No filme, vi um rapaz mimado, filhinho de papai que nunca precisou trabalhar para conseguir nada, já tinha tudo nas mãos. A mãe vivia para satisfazer as suas vontades e loucuras. O pai preferiu se afastar das suas responsabilidades e deixou a vida correr solta. São esses pais que devemos ter como exemplo?”

Cazuza, como já sabemos, nasceu numa família com boa situação financeira. Algum demérito? Acho que não, afinal, é uma idéia razoavelmente aceita em nossa sociedade pessoas não devem ser julgadas por suas posses. Até aí Cazuza é inocente.
Quanto à criação recebida por Cazuza de seus pais, não podemos também culpá-lo. Poderíamos culpar seus pais, mas aí o texto desviaria do seu personagem central e o público perderia o interesse, até por que os pais de Cazuza não são ídolos populares, nem são tomados como referência de paternidade por ninguém que eu conheça. Cazuza era um jovem mimado? Provavelmente isso se deve a uma personalidade forte e à criação de seus pais, sendo um sintoma até bastante comum entre filhos únicos. Isso é desagradável, sim, mas seria suficiente para invalidar toda a obra de um artista?
Enfim, ainda que Cazuza fosse realmente o maior canalha de todos os tempos, pra dar inveja em Judas e Hitler, isso não afetaria de modo algum a sua arte. Afinal, se fossemos avaliar a arte sempre em função da vida pessoal do artista, teríamos que dar crédito a qualquer “cidadão modelo” ainda que de pouco talento, em detrimento dos realmente talentosos que, por ventura, não levassem a vida de acordo com os ditames da sociedade. Se tomássemos por critérios os sugeridos pelo texto, imediatamente nos veríamos obrigados a descartar alguns nomes importantes da música e das artes como Modigliani, John Lennon, Polanski, Edith Piaf, Michael Jackson, Elis Regina, Oscar Wilde...

“Cazuza só começou a gravar porque o pai era diretor de uma grande gravadora.
Existem vários talentos que não são revelados por falta de oportunidade ou por não terem algum conhecido importante.”

A idéia mais ou menos geral é a de que Cazuza foi um dos maiores letristas do rock brasileiro, carregando o título de “poeta do rock”, rarissimamente atribuído a algum letrista. A sua banda, o Barão Vermelho, conta com instrumentistas considerados referências para os músicos e produtores das gerações seguintes, como Roberto Frejat. E quem conhece bem o rock nacional dos anos 80 deve saber que naquele momento as gravadoras estavam contratando praticamente qualquer um que empunhasse uma guitarra, o que deu origem a várias bandas com trabalhos de qualidade duvidosa, a maioria das quais não sobreviveu aos anos 90. Não me parece, então, que a carreira do Cazuza tenha se devido exclusivamente ao cargo de seu pai, mas sobretudo ao seu talento e carisma reconhecidos até hoje, diferentemente de muitos de seus contemporâneos.

“Cazuza era um traficante, como sua mãe revela no livro, admitiu que ele trouxe drogas da Inglaterra, um verdadeiro criminoso. Concordo com o juiz Siro Darlan quando ele diz que a única diferença entre Cazuza e Fernandinho Beira-Mar é que um nasceu na zona sul e outro não.”

Agora a autora descamba para o “Datenismo”, abandonando a argumentação e apelando para absurdos hiperbólicos. Cita inclusive uma frase infeliz de Siro Darlan, um dos juízes mais polêmicos da Vara de Infância do Rio de Janeiro, criticado inclusive entre colegas do meio jurídico. Não li o “Só as mães são felizes”, mas tenho certeza de que Cazuza fez carreira como músico, não como traficante. Cazuza nunca chefiou ou sequer integrou uma organização criminosa responsável por assassinatos, tortura, terrorismo e ondas de crime que se alastraram pela cidade. Muito pelo contrário. A colaboração de Cazuza para o grande público foi sua arte, sua música, não mortes, drogas e terror. Existe sim uma imensurável diferença entre um chefe do narcotráfico responsável pela morte de inúmeras pessoas e um artista de talento reconhecido nacionalmente tanto no rock, no pop e na MPB. Com critérios assim tão elásticos, poderíamos afirmar que alguém xinga, faz fofoca ou que produz um texto difamatório para circular pela internet (incidindo em crimes contra a honra) é tão criminoso quanto Fernandinho Beira-mar. Comparação perigosa, não?

“Fiquei horrorizada com o culto que fizeram a esse rapaz, principalmente por minha filha adolescente ter visto o filme. Precisei conversar muito para que ela não começasse a pensar que usar drogas, participar de bacanais, beber até cair e outras coisas, fossem certas, já que foi isso que o filme mostrou.”

“Culto” ? Ninguém “cultua” Cazuza. As pessoas o admiram e respeitam pelo seu trabalho, pela sua arte e carisma. A própria autora do texto não teve muita coragem de negar seu talento artístico, reconhecendo que “suas letras são muito tocantes” e focando sua crítica exclusivamente na vida pessoal do músico. Ora, pois! Até hoje não ouvi um só ser humano afirmar que Cazuza era o máximo por usar drogas ou por “fazer bacanais”, então acho que a preocupação da autora como mãe é, no mínimo desmedida. Se a única maneira de fazer sua filha adolescente entender que drogas, sexo grupal e alcoolismo não são idéias muito seguras nos dias de hoje, por sinal você demorou demais para começar a educá-la. E também não acredito que por ver um filme que aborda esses assuntos a pessoa se sinta compelida a praticá-los. Aos 8 anos de idade eu já tinha assistido toda a coleção de Sexta-feira 13, mas até hoje nunca decapitei ninguém... (pelo menos ate hoje, né...)

“Por que não são feitos filmes de pessoas realmente importantes que tenham algo de bom para essa juventude já tão transviada? Será que ser correto não dá Ibope, não rende bilheteria? Como ensina o comercial da Fiat, precisamos rever nossos conceitos, só assim teremos um mundo melhor. “

Quem disse que a televisão não ensina nada? Feliz é o mundo que depende dos ensinamentos de um comercial da Fiat para encontrar sua salvação...
Mas se bem me lembro “Você precisa rever seus conceitos” era o bordão de uma campanha da Fiat que promovia justamente uma ruptura com conceitos arcaicos e moralistas (“pré-conceitos”...?), ultrapassados e reacionários como os tão inflamadamente pregados pela autora.
Talvez devêssemos mesmo romper com nossos preconceitos e aprender a apreciar um filme pelo que ele é. Aprender a apreciar uma música pelo que ela é. Aprender a julgar os livros pelo conteúdo, não pela capa. Ao julgar a obra de um artista em razão da vida pessoal, estamos simplesmente ignorando a obra e julgando a pessoa. Qual a razão de ser da arte se na hora de a avaliarmos nos esquecermos dela própria em razão de pretensiosos julgamentos de caráter do artista? Artistas são seres humanos, não super-heróis da moralidade e do conservadorismo religioso... até porque a arte conservadora é a mais pobre que se pode produzir. Arte sem ruptura, sem inovação, sem diferença, sem contraste... arte sem arte, produção em série.

“Devo lembrar aos pais que a morte de Cazuza foi consequência da educação errônea a que foi submetido. Será que Cazuza teria morrido do mesmo jeito se tivesse tido pais que dissesem NÃO quando necessário? Lembrem-se, dizer NÃO é a prova mais difícil de amor. Não deixem seus filhos à revelia para que não precisem se arrepender mais tarde. A principal função dos pais é educar.. Não se preocupem em ser 'amigo' de seus filhos. Eduque-os e mais tarde eles verão que você foi à pessoa que mais os amou e foi, é, e sempre será, o seu melhor amigo, pois amigo não diz SIM sempre. (Karla Christine - Psicóloga Clínica)”

Imaginei agora o atestado de óbito indicando como Causa mortis: “Educação Errônea”, em vez de algo como “falência múltipla dos órgãos”. Pode ser só impressão minha, mas me parece que o discurso da autora repete aquelas crenças preconceituosas sobre a AIDS, de que se falava muito nos anos 80, chamando-a de “a peste gay” e coisas parecidas. Toda essa conversa ignorante que ajudou e muito na difusão do vírus entre pessoas que acreditavam estar imunes à doença por não estarem dentro dos chamados “grupos de risco”. Enfim, essa coisa de querer atribuir a uma doença dessa natureza algum caráter de “punição divina” é um tanto perigoso, só serve ao propósito da desinformação.
Estima-se que o Cazuza tivesse a doença desde os idos de 1985, apenas 3 anos depois dos primeiros casos da AIDS serem detectados no Brasil. Ora, ninguém sabia nada sobre o assunto e não havia as maciças campanhas de prevenção que existem hoje em dia. Talvez o destaque dado pela imprensa à morte de “marginais” como Cazuza, Renato Russo, Freddie Mercury e Betinho (subversivo!) tenha ajudado na divulgação dos métodos de prevenção e impedido que milhares de pessoas viessem a contrair a doença.
Então, meus amigos, sejamos inimigos de nossos filhos. Quem sabe assim eles nos ouçam e confiem mais em nós...

Leonardo Baldez –Músico, Advogado, Blogueiro, Funcionário Público e... marginal?

4 comentários:

  1. Sabe o que eu diria pra essa mulher?
    " Por que não enfias teus argumentos em seus aconchegos?"
    Ou algo do tipo...hehehe

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  2. "a burguesia fede"
    Vc num citou a autora! precisa citar o nome da dita cuja!
    Vamos fazer sexo grupal?

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  3. Hahahaha, já dizia Fernando Collor!

    ***

    O nome da autora é Karla Cristine, tá mencionado no final do texto dela.

    Tá muito calor pra sexo grupal... quem sabe outro dia.

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  4. Caramba, vc tem 4 credenciais!!!!

    Engraçado. Eu não gostei muito do filme do cazuza pq ele parecia uma espécie de semideus que não conversava com ninguem, apenas discursava com frases de efeito.

    Enfim, acho que o filme deixou a desejar exatamente no lado humano do cazuza, um cara que tinha uma porrada de defeitos e que exatamente por isso tinha uma história de vida incrível e um talento enorme para aquilo que se propos a fazer, que era musica e poesia.

    E dificil constatar que talento não é uma coisas dada por merito. E que uma pessoa que "não merece" acaba sendo genial.

    Mas eu tb acho que é isso que torna a humanidade interessante, a capacidade - que, pelo visto, não são todos que tem - reconhecer talento até onde vc não consegue ver mérito.

    (sério, é MUITO ruim registrar comentário nesse blog, até escrever é dificil)

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